Painel do Mundo
Por Márcio Bariviera (08/06/2025)
Quando o frio era doce

Era fim de maio, início de junho. O inverno já começava a dar seus sinais, quando o vento corria atrás dos holofotes e as chaminés das casas em nossa pequena cidade do interior anunciava que o frio estava se aproximando. Mas era outono ainda, aquele pedaço de tempo em que as tardes pareciam douradas e o mundo, por tabela, mais gentil. Naquelas tardes, a infância ganhava forma com nossos botões deslizando sobre o Xalingão, sobre o chão, não importava aonde e nem como acontecia. O que importava é que acontecia.
Nossos torneios eram bem organizados. Tinham regras, tabelões estilo aqueles que vinham encartados nas revistas Placar dos anos 80, medalhas de papel laminado... E de carona, na sede de cada rodada, sempre tinha uma mãe bondosa e abençoada fazendo pipoca, outra caprichava no chocolate quente e assim, na base de uma simplicidade absurda, o mundo cabia todo ali. Nossas disputas eram sérias, mas leves, exatamente como devia ser a nossa vida naquela idade.
E saíamos sempre vitoriosos, mesmo quem perdia. Porque a graça estava em jogar, em comemorar um gol numa narração que plagiava Osmar Santos, a escapada do camisa 7 pela ponta direita. Sim, naquela época, o camisa 7 jogava na ponta direita. A graça também estava em reclamar de um lance duvidoso, no leve raspão no botão adversário antes de tocar na bola, lances que nem o atrapalhado VAR de hoje conseguiria decifrar. Era uma infância de verdade, onde o lúdico morava em cada pequeno detalhe. Nada de telas, de sons artificiais, de pressa. Era tudo simples e ao mesmo tempo intenso.
Nossas tardes tinham um ritmo só nosso. Como se estivéssemos em outro planeta, longe dos problemas dos adultos, distantes do caos de economia ou da inflação que subia de forma descontrolada. A infância grudava em nossas peles como uma tatuagem descrita: “Eu estou aqui”. E ela estava mesmo. Ela nunca nos desamparava, ela nunca soltava as nossas mãos.
A hora de ir embora era sempre melancólica, assim como era melancólico quando a gente sediava a rodada e via os amigos virando as costas em direção à porta. O sol do outono se escondia devagar e a gente via aquele laranja triste tingindo o céu. E as fumaças das chaminés passavam a régua no fim do dia e iniciava a saudade estranha de algo que recém findava, quando arrumávamos os nossos times nas caixinhas como quem guardava tesouros.
Voltando no tempo e olhando para trás, parece que muita coisa se perdeu. As crianças já não inventam mundos com botões. Já não sentem o gosto do chocolate quente depois de uma final suada. O tempo ficou mais rápido e menos mágico. Talvez por isso aquelas tardes tenham ganhado um brilho ainda mais bonito nos dias de hoje, quando a gente tira tudo aquilo da memória e passa para uma crônica.
Era uma infância diferente. Longe, muito longe do normal de hoje. E que bom, diga-se de passagem. Era uma infância que deixava marcas nos joelhos, nas mãos e principalmente nos nossos corações. A gente nem percebia que o inverno estava quase batendo às nossas portas, já que os fogões à lenha aqueciam nossos ambientes e enchiam de calor o peito de cada um. E no dia seguinte teríamos mais uma rodada, quando tudo voltaria a acontecer como se fosse a primeira vez.
O gaúcho de Rodeio Bonito, Marcio Bariviera é gerente administrativo do União Frederiquense, clube que disputa a Série A2 do Gauchão, além de assinar uma coluna semanal no jornal O Alto Uruguai, de Frederico Westphalen-RS. Rock e futebol de botão são duas paixões desde a infância (e se puder dar palhetadas ouvindo Led Zeppelin fica time completo).
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