Painel do Mundo

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MUNDO BOTONISTA

Por Sergio Travassos (29/06/2025)

Ritos

Um certo jogador de futebol consagrado nos gramados do Brasil, à véspera de um grande clássico regional, bateu à porta do quarto do médico do Santa Cruz. Ao abrir a porta, o chefe médico percebe um semblante aflito daquele grande craque. Chamando-o para um canto, ele pergunta o que estava ocorrendo, no que o atleta mostra-lhe as mãos trêmulas. Preocupado, tenta descobrir o que há. Seria uma crise de ansiedade, de pânico? Algo neural? Febre? O atleta pede-lhe um favor: “Dotô, só consigo dormir após um ritual, mas esse ritual não pode ser feito nessa noite, pois a vigilância foi redobrada. Há jornalistas, seguranças, dirigentes, torcedores demais por todo canto do hotel e fora dele."

Que “diacho” esse homem quer, perguntou-lhe assustado. “Eu preciso beber três garrafas de cerveja.” Atônito, mas entendendo a situação urgente, o médico pensa milhões de coisas em uma fração de segundo e decide, pelo bem do time e da discrição, que ele mesmo vai sair para comprar o líquido desse ritual particular. “Fique aqui no meu quarto.”

Tal qual um espião, ele sai sorrateiro e sonda o local. Realmente, um sem-número de pessoas se prostrava no saguão e fora do hotel. Fala com um e com outro. Acende o cigarro, alisa os grandes bigodes. Ao lado do chefe da segurança, diz que vai a uma farmácia para comprar um medicamento extra para tratar um atleta. Sai, passa na farmácia, chega a um botequim e pega três cervejas com a promessa de devolver os cascos no dia seguinte. 

Compra uns cigarros, chicletes e um mói de “nego bom” – um doce feito de melaço de cana, muito comum em Pernambuco. Voltando, é parado por um segurança que pede para verificar o que havia nas sacolas. Ao ver as cervejas, olha bem fundo nos olhos do médico que responde que não está conseguindo dormir, ansioso pela decisão. Oferece-lhe cigarros, o doce. O vigilante sorri, pega os singelos “regalos”. 

Abre a porta do quarto e vê aquele gigante com olhar feliz de criança ao receber um presente. Bebe sem tremer as mãos, no gargalo. No final, abraça tranquilo o colega de clube e promete-lhe: “farei um gol por cada cerveja que o senhor me trouxe”. Foi tranquilo para o seu quarto, cumprimentou um dos seguranças do corredor. O médico não pregou os olhos. Nem com calmante. 

O jogo estava um verdadeiro e digno “risca-faca”. Estádio lotado. A torcida adversária lotava a sua casa. Quem vencesse, estaria classificado para a próxima fase. O médico estava mais nervoso do que em decisões a que estava acostumado. Gol do oponente. O atleta do ritual passa ao lado do banco e pisca para o médico. Logo em seguida, sobe para empatar. O jogo segue tenso e o Santa Cruz está em desvantagem novamente. Com habilidade, após uma tabelinha, ele empata com um petardo de fora da área. 

O relógio avança ligeiro. O empate era ruim para ambos. No finalzinho, eis que conseguem uma falta. Não era muito comum, mas ele pega a bola, a beija e ajeita, carinhosamente, no local indicado pelo árbitro. Vaias aumentam. Mesmo assim, o médico consegue escutar o próprio coração. Após uns segundos que pareciam horas, o ritualista dá um passo à frente e encaixa um golaço, no ângulo. Explosão Coral. Após a comemoração com a torcida tricolor que ocupava a totalidade de sua área de visitante, lá vem o atleta e, sorrindo malandramente, abraça o médico e dispara: “promessa é dívida”. 

O ritual está presente, principalmente em pessoas que sofrem grandes pressões. Porém, é mais latente no desporto. É aquela abaixadinha para tocar o gramado e fazer um sinal religioso qualquer. É corrigir a passada para entrar em campo com o pé direito. São os toquinhos do goleiro em cada ângulo da barra. Usar a mesma cueca da vitória anterior. Todos têm uma mania ritualística. 

No futebol de mesa, não temos a pressão de um atleta de grande clube de futebol ou um piloto de Fórmula 1, sequer de um boxeador. Mas temos as nossas manias. Uns conversam com os seus botões, tal qual aquele ditado antigo. Outros enceram o time três vezes. Alguns têm que treinar antes de dormir, enquanto outros buscam ficar longe dos campos. Segundo o sociólogo francês Émile Durkheim, “o ritual é uma forma de criar significado e ordem no mundo.” Ele nos ajuda a lidar com a incerteza e a ansiedade, fornecendo uma estrutura para as nossas ações e pensamentos.”

Isso cria um caminho mental que tranquiliza o espiritual. É quase um abraço aconchegante que recebemos da nossa mainha antes de uma prova difícil. O ritual, nesse caso, é muito benéfico e comum, até para os que dizem não ter ritual algum. Ledo engano. Alguns, todavia, têm a mania igual àquela do atleta que acompanhamos um trechinho. E isso pode ser bom ou ruim. Conheço atletas do nosso desporto que, inclusive, jogam mais “tranquilos”, bebendo no decorrer da competição. Eu, se beber um gole, já vejo a bolinha dançando à minha frente.

O que percebo, nas quase quatro décadas em que vivencio o desporto, de goleiro de futsal, passando por supervisor, dirigente, “técnico” ou assessor de imprensa, é que é tão comum quanto beber água e, algumas vezes, chega a ser engraçado, quando vemos algum colega a ficar dedilhando a plaheta-régua da regra 1 Toque, uma, duas, três, quatro vezes, antes do arremate. 

O mais engraçado, ao meu ver, é que alguns mantém o ritual, mesmo após derrotas fragorosas. É como se o ritual fosse mais um membro da comissão técnica, com quem podemos discutir. E, num desporto individual e individualista, feito o nosso, é como se essas manias nos minimizassem a solidão do jogo. Do você contra o mundo. E você, qual o seu rito?

Quebra

“A verdadeira liberdade e virtude vem da capacidade de romper com as convenções e os ritos que nos limitam e de criar um caminho próprio”, escreveu o filósofo Jean-Paul Sartre. Como sou adepto da dialética, não poderia mer abster de deixar aqui exposta essa frase supracitada. A meu ver, temos que ter o nosso rito, se isso nos deixa confortável, seguro. Mas certos ritos, tal qual pessoas, podem não estar sendo positivos para nós antes do treinamento ou do jogo. Temos que ter o discernimento e a mente aberta para quebrar esse ciclo. Também, em paralelo, devemos ser serenos na nossa análise. Quase que frios. Ou seja, às vezes, temos que deixar o ritual no banco para, quem sabe, instigá-lo. 

Dito isso, cito outro exemplo do futebol. O ano era 1975, e o Santa Cruz tinha à frente o pouco lembrado técnico Paulo Emílio. À véspera de uma partida decisiva no Maracanã, contra o Flamengo de Zico, Júnior, Raul, dentre outros, o técnico Coral mudou a programação do time. Ao invés de palestra no hotel sobre o jogo, levou os atletas ao teatro para assistir a uma peça de comédia. A mudança no ritual fez com que os atletas trocassem a segurança do ritual pela descontração da mudança de foco. Resultado: Flamengo 1x3 Santa Cruz. Classificação garantida.

Biblioteca de "De toque em toque"

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Sergio Travassos é diretor do Santa Cruz F.C. há doze anos, jornalista com outras duas formações, Educação Física e Marketing, que atua há muito tempo em prol do desporto pernambucano. Tendo passagens pela Federação Pernambucana e CBFM. Sendo uma das figuras que mais defende o jogo de futebol de mesa, independente da regra de atuação, bem como que as competições sejam feitas em locais públicos, visando atrair mais visibilidade para o futmesa.

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travassos@mundobotonista.com.br
(081) 97100-2825

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