Painel do Mundo
Por Giovanni Nobile (05/10/2025)
Dias perfeitos

De vez em quando, sem data certa ou motivo claro, sinto vontade de abrir a caixa onde guardo os velhos times de botão. É sempre num momento em que a vida anda ligeira demais, quando os compromissos começam a soar como vozes de aeroporto: todas urgentes. Montar o campo, escolher os times com as escalações antigas, organizar cada time e começar uma partida solitária - mas sabendo não estar de fato sozinho, mas na companhia das minhas memórias de infância. Toda a pausa remete a um resgate essencial de ser quem sou.
Há um tipo de memória que só o jogo recupera. Lembro do ruído do rádio ligado, que era o som do tempo passando e que exigia presença para que se acompanhasse o jogo. Na semana passada, por exemplo, liguei a TV para acompanhar uma partida, com o celular na outra mão. Ao final do primeiro tempo, eu não tinha visto nada do jogo, e o ar sem ruído ruía mais do que o próprio tempo. Enfim, lembro também do goleiro de caixa de fósforo e do outro goleiro de plástico mesmo (no qual um dia pisei em cima, doeu meu pé de oito anos de idade e chorei, o goleiro foi para o departamento médico e ainda hoje resiste com a mesma fita crepe amarela velha daquela época). Lembro da minha própria regra não escrita que permitia toques infinitos com cada jogador, o que permitia fazer tabelinhas, lançamentos e matadas no peito, mas também gerava grandes arrancadas surpreendentes do volante que se arriscava a subir ao ataque para fazer um golaço, caso o goleiro da fita crepe não fizesse uma linda ponte para salvar o time visitante de sofrer mais um gol. Jogar botão hoje, já adulto, é menos sobre o jogo em si e mais sobre um reencontro com algo que o tempo quase apagou — um traço de mim mesmo que segue ali, quieto, esperando ser chamado de volta à superfície, para tomar um fôlego. Outras coisas geram sensações bem parecidas, como quando ando de bicicleta, mas o futebol de botão recupera um grande enredo em minha memória sobre meus torneios imaginários e craques e lances e todo o universo que girava em torno de cada partida. E quem dirá que nunca existiu?
Bom... Nesses dias em que dá vontade de abrir a velha caixa de botões, busco a gravação de narrações antigas de rádio e coloco para ouvir no
YouTube ou no
Spotify para trazer uma atmosfera da época. O chiado entre as frequências parece soprar a poeira das lembranças. Escutar futebol no rádio é como ouvir uma história contada na varanda. Uma companhia que não exige nada além de presença. E ali, entre um ataque perigoso e um impedimento duvidoso, sigo movimentando meus botões como quem varre o quintal do próprio passado, rega as plantas e sente o cheiro da terra molhada, num tempo em que eu ainda via vagalumes. Faz anos que não vejo vagalumes. Aliás, ontem uma cigarra cantou solitária. Eu sempre me pego com o medo de estar ouvindo o canto da última cigarra. Será como o último dia em que meus times de futebol de botão entraram em campo ainda com a sensação de tempo presente e não da nostalgia? Jogar botão me traz uma sensação de presença.

Penso muito naquele filme japonês, "Dias Perfeitos", em que o protagonista limpa banheiros públicos em Tóquio e encontra beleza na repetição e em uma vida focada em estar presente, com uma vida analógica e sem as interferências de um mundo digital. Curioso como o chiado do rádio era chamado de interferência, mas o tom limpo de rolar o
feed nas redes é a verdadeira interferência, né? Enfim, o protagonista do filme não fala muito, mas escuta música numa fita, cuida das plantas, lê seus livros, anda de bicicleta, faz algumas fotos em sua câmera de filme de 24 poses enquanto olha para o céu. Há dignidade no gesto simples. Há arte na rotina. Às vezes acho que jogar botão ouvindo rádio é a minha versão disso: um intervalo sagrado entre o barulho do mundo e o que sobra quando o mundo cala. Se é que cala.
O jogo no rádio termina. Meu time perde, mas sai aplaudido. Está tudo bem. Recolho os botões, desligo o YouTube que simulava o rádio. Não há plateia, não há troféu, só um sentimento estranho de leveza. Como se, por alguns minutos, tudo tivesse feito sentido — mesmo sem precisar explicar nada.
Giovanni Nobile é jornalista e fundador do Águia Branca Futebol de Mesa (time que nasceu nas quadras de futsal em Santo Antônio da Platina, no Paraná, fez um jogo em 1997, ganhou, e se orgulha de ser o time há mais tempo invicto no mundo - tudo bem que nunca mais jogou, mas essa é outra história). Seu melhor resultado nas mesas foi um vice-campeonato de etapa na série extra da Liga União, cuja medalhinha tem guardada até hoje. Há mais de 10 anos, vive em Brasília. Por aqui, traz crônicas aos domingos sobre o nosso Mundo Botonista.
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