Painel do Mundo
Por Jeferson Carvalho (18/08/2025)
Editorial:
O fim do silêncio
Entre desabafos, denúncias e regulamentações, o futebol de mesa vive um momento decisivo ao ver seus praticantes assumirem uma nova postura diante de condutas antidesportivas que mancham a imagem do esporte.

A tomada de consciência individual é um processo demorado, construído ao longo da vida, no qual diversos fatores desempenham um papel importante — especialmente os sociais e culturais. Os valores éticos são primordiais nesse percurso. Já a tomada de consciência coletiva é ainda mais complexa, pois exige que um grupo esteja relativamente alinhado quanto a valores, crenças e sentimentos comuns. Embora se estruture lentamente, alguns eventos específicos funcionam como catalisadores desse processo, alertando os membros do grupo de que alguma atitude precisa ser tomada para alterar o estado de coisas. Foi o que vimos recentemente no debate aberto sobre os comportamentos de alguns atletas do nosso esporte, evidenciados nas transmissões dos jogos de futebol de mesa.
Os adeptos do futebol de mesa sempre estiveram atentos aos desvios de comportamento dessa pequena minoria. Muitos confidenciavam suas inquietações a companheiros mais próximos, especialmente àqueles com quem se sentiam à vontade para tratar de um assunto tão desagradável. Tornar público esse incômodo poderia ferir sensibilidades, e quase sempre optou-se por de evitar o confronto direto. Afinal, somos uma comunidade bastante nichada, em que todos se conhecem e se reencontram nos fins de semana, seja para treinar, seja para competir. Apontar o dedo e denunciar publicamente os problemas expunha mais o indignado do que o infrator e, na prática, exigia coragem e energia que nem todos estavam dispostos a empregar.
O problema é que esse acordo tácito de silêncio fazia vítimas e, mesmo reverberando à boca pequena, provocava sintomas indigestos. Só para citar alguns: um número crescente de botonistas ressentidos; outros reproduzindo atitudes antidesportivas que antes condenavam, confiantes na impunidade; e alguns que, com o tempo, simplesmente se afastavam do esporte para evitar conviver com pessoas tóxicas. Por mais prejudicado que um botonista se sinta diante de uma atitude desleal ou antiética, quem perde, de fato, é a modalidade.
O portal Mundo Botonista, enquanto veículo dedicado ao cronismo esportivo do futebol de mesa, trouxe à luz, em diversas ocasiões, manifestações pontuais de seu qualificado corpo de cronistas sobre o assunto. Vale recuperar algumas delas aqui, começando por uma crônica assinada por Quinho Zuccato — além de grande craque da regra 12 toques, uma das figuras mais respeitadas e corretas numa mesa de jogo. Mesmo não sendo de seu feitio reclamar de adversários, o hexacampeão brasileiro escreveu de forma crua e honesta sobre "O limite da desonestidade" em sua coluna 1toQuinho+, no último dia 23 de julho: “Perdoem-me pelo desabafo de alguém que procurou a vida inteira jogar dentro da regra e que, muitas vezes, sofre calado com o que passa nas mesas.”

Outro gigante do esporte,
Robertinho, já havia usado sua coluna "Jeito & Força" para se manifestar sobre a antidesportividade de alguns atletas, num texto de outubro do ano passado chamado: “Não somente o botonista que sofre com isso é afetado. Quando assisto aos vídeos e vejo enrolações exacerbadas, fico triste, bravo e frustrado. Ainda mais se o praticante desse péssimo hábito sair vencedor. Passou da hora de exigirmos jogos mais dinâmicos, de acordo com o regulamento, respeitando a regra e principalmente o adversário.”
O problema é tão recorrente que, desde 2024, o portal mantém uma coluna dedicada ao tema — Jogo de Cavalheiros. Assinadas por
Gustavo Martorelli, as publicações denunciam desvios de conduta que disseminam o mal-estar na comunidade. Em um de seus textos mais agudos, o cronista recorre a uma parábola infantil sobre um menino que tenta sujar as roupas do vizinho com carvão. Com o título "Sujeira para todo lado", a analogia é brilhante: “Podemos equiparar aqui o jogador catimbeiro com o menino mau. Por seu próprio ímpeto vil, entende que pode fazer qualquer coisa para evitar um resultado indesejado e então abre sua caixa de ferramentas da perversidade — o saco de carvão — e começa a distribuir feiuras no jogo.”
Destaco também o texto "Identificando e corrigindo condutas", publicado em 21 de julho deste ano, de autoria do presidente da CBFM,
José Jorge Farah, em sua coluna "CBFM em Ação". Na condição de dirigente da maior federação estadual do país — a paulista — ele reforça uma normativa que condena condutas como fazer cera (demora excessiva nos lances), comportamentos antidesportivos, discussões acintosas com o oponente, substituição de botões durante a partida e até bater com o goleiro na mesa. Ele conclui: “(...) a FPFM deve coibir estes lamentáveis fatos e tentar incutir nos atletas a necessidade de que seja cumprida a regra, evitando-se discussões e futuros problemas.”
Bem antes, no início de 2022, na coluna É tudo botão, o cronista José Carlos Cavalheiro abordou o tema sob a mesma perspectiva crítica. No texto "A trapaça, a confusão e o excesso de tolerância", ele tenta explicar por que somos tão condescendentes com indivíduos desleais no nosso meio: “Creio que parte dessa tolerância vem da nossa cultura. Apesar de sabermos exatamente quem eles são e o que fazem, preferimos mantê-los ao nosso lado, talvez por receio de gerar ainda mais conflitos.” Na época, o momento era outro. Talvez porque os botonistas não estivessem sob tamanha exposição, ou porque não houvesse tantas transmissões, ou mesmo por desinteresse - uma publicação que não foi bem recebida por alguns atletas, gerando críticas e um certo desconforto. Talvez ainda não estivéssemos prontos para o debate que hoje se impõe.
Diante da reverberação dessas manifestações e do clamor crescente entre os botonistas, os dirigentes entenderam ser hora de agir. A
Confederação Brasileira de Futebol de Mesa (CBFM) divulgou, em 2024, seu
Regulamento Disciplinar, com o objetivo de estruturar os campeonatos oficiais organizados e chancelados pela entidade. O documento se aplica a federações, clubes, associações, diretores, atletas filiados, representantes e associados. Determinou-se que cada regra (12 toques, dadinho, 1 toque etc.) deveria criar um
Conselho Disciplinar responsável pelo enquadramento e julgamento das transgressões. As infrações foram classificadas como pequenas, médias ou graves, com penalidades específicas para cada uma. As decisões podem ser levadas aos Tribunais de Justiça Desportiva estaduais e ao Supremo Tribunal de Justiça Desportiva.
Na mais recente atualização, datada de 7 de agosto de 2025, a CBFM publicou um ofício que ratifica a aplicação do Regulamento Disciplinar, apertando o cerco sobre aqueles que ignoram as regras básicas de comportamento. O documento determina que imagens de vídeo e registros fotográficos poderão ser usados como provas válidas. Os delegados das competições terão autonomia para agir imediatamente em casos flagrantes, e qualquer atleta tem a obrigação de relatar irregularidades. Em casos graves — como agressões, alteração do material de jogo ou indisciplina — o delegado poderá convocar uma comissão de cinco atletas de reputação ilibada para avaliar se o infrator será eliminado da competição.
Esse amadurecimento, ainda que penoso e incômodo, nos trouxe ao estágio atual de compreensão sobre o futuro que desejamos para o futebol de mesa. Não se trata de um basta, nem de um lampejo de epifania lançando luz sobre algo antes invisível. Como dito na introdução deste editorial, a tomada de consciência coletiva é um processo lento e gradual. Porém, num contexto em que o futebol de mesa pleiteia ser tratado como esporte regimentado, federado e — por que não? — profissional, é natural que os botonistas também sejam cobrados por uma conduta esportiva séria e responsável.
E não adianta se indignar com reportagens que começam com o famigerado jargão jornalístico: “Brincadeira de criança que virou coisa séria.” O principal movimento deve acontecer de dentro para fora. É um gesto inalienável. Não se pode cobrar dos outros o respeito que nós mesmos não nos damos. Como já dizia minha finada mãe: respeito não é uma coisa que se pede, mas algo se conquista.
Idealizador do Mundo Botonista, o paranaense Jeferson Aparecido de Carvalho, formado em Letras, professor de línguas e literatura é um artista multi-talentos. Design gráfico, pintura, literatura, linguagem web, música - seu espectro criativo, livre e variado, é uma espécie de assinatura visual de toda a plataforma (portal, blog, stream, redes sociais, e principalmente as produções audiovisuais). Ex-presidente da Federação Paranaense e bi-campeão estadual, apesar do relativo sucesso como atleta, nada que tenha feito nas mesas merece mais destaque que suas contribuições extraordinárias para a criação de uma linguagem audiovisual que aproximou o futebol de mesa das mídias contemporâneas de informação e comunicação.
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